sexta-feira, 20 de maio de 2011

José Hamilton Ribeiro, um repórter de grandes histórias


José Hamilton Ribeiro é uma daquelas figuras difíceis de esquecer. Jornalista desde 1955, o repórter de encanto singular demonstra também algo incomum em grandes profissionais da imprensa: a simplicidade. Foi ali, numa das livrarias da capital paulista que “Zé Hamilton”, como permite ser chamado,  discursou e encantou duas aspirantes à prática de um jornalismo mais profundo e cercado de humanidade.

Pela Universidade Federal de Santa Catarina, o “Zé” já é doutor no ofício jornalístico. Na internet, um documentário sobre o “príncipe dos repórteres” circula na rede e leva adiante informações e um pouco da imagem carismática do jornalista, que atualmente integra a equipe do programa Globo Rural, exibido pela Rede Globo de Televisão.

José Hamilton compõe o grupo de jornalistas que gostam de tocar fisicamente os cenários e os personagens de sua reportagem. Ingressou no curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero na década de 50, e, ainda como estudante, teve seu primeiro contato com a imprensa ao cobrir férias de um jornalista na rádio Bandeirantes.

Após ler um anúncio na então Folha da Manhã – hoje Folha de S. Paulo -,  resolveu candidatar-se à vaga de jornalista. Marcou uma entrevista e recebeu um telegrama comunicando a aprovação para ocupar o posto no jornal. Tinha 20 anos de idade quando ingressou na redação e conta: “naquela época jornalista ganhava muito mal, os caras não eram sócios de clube, nem academia, jornalista era um tipo de um cartorário, trabalhador de cartório, mas ali tinham grandes poetas”.

Zé Hamilton segue seu próprio ritmo, vai falando de suas experiências e parece deixar o tempo correr a vontade quando a pauta da conversa é falar de jornalismo. Ele ensina que somente quando o repórter coloca-se a campo é que pode descrever com tamanha precisão e sensibilidade os fatos que envolvem o foco da reportagem. O jornalista aponta que a reportagem pode ter sido fator essencial na projeção da Folha como um grande jornal nacional para a época: “de um discreto jornal paulistano ao maior jornal do país”, segundo ele.

De qualquer forma, vale lembrar que hoje o espaço dedicado às grandes reportagens dentro dos jornais ainda é bastante limitado. O gênero parece libertar de tal maneira o jornalista das amarras do jornalismo convencional que não admite ser calculado em caracteres. Se a história narrada precisa ser detalhada a ponto de demonstrar nitidamente as experiências e impressões do repórter, talvez o bloco de texto dividido em três colunas não suporte o anseio de liberdade proposto pelo jornalismo literário.

Na revista Realidade, Zé Hamilton foi um dos grandes nomes a integrar a equipe criteriosamente selecionada pela editora Abril. As perguntas  quanto à passagem do repórter pelo veículo era certa na entrevista. Quando questionado sobre a reportagem que teria marcado sua vida, o jornalista cita logo a cobertura sobre a guerra do Vietnã.

O primeiro relato sobre a guerra (publicado na edição nº 26 de Realidade) refere-se ao acidente causado pela explosão de uma mina já nos últimos dias de sua passagem pelo cenário do combate. O repórter diz que a reportagem o marcou “também fisicamente”, ocasião em que perdeu a parte inferior de sua perna esquerda. Mas a matéria sobre a rotina no Vietnã seria contada na próxima edição, sob o título “Guerra é assim”. É nesta publicação que o jornalista descreve com riqueza de detalhes a situação do povo vietnamita frente ao combate norte americano.

Na foto, José Hamilton Ribeiro estampa a edição 26 de Realidade.
O jornalista perdeu a parte inferior da perna esquerda ao cobrir
 a guerra do Vietnã para a revista.

A respeito do sucesso de Realidade em seu tempo de publicação, José Hamilton revela que não acredita que hoje uma revista alcançaria tamanha expressividade como teve a publicação. Na visão do jornalista “o mundo é outro, a Realidade foi fruto de circunstâncias que não existem mais”. O jornalista reforça que uma revista bem feita no Brasil, de reportagem com qualidade de texto, como a Realidade , e ajustadas no tempo de hoje, não seria uma explosão de vendas mas com certeza teria leitores cativos. “A leitura é um prazer, e uma revista de leitura se faz com bons textos”, reforça Zé Hamilton.

Sobre a internet como meio de veiculação das grandes reportagens, o repórter considera o suporte como ferramenta, comparando-a com um tonel vazio onde as pessoas colocam o que bem entendem. “Ali vai ter jóias, vai ter anel de brilhantes, uma fotografia linda, um poema maravilhoso, pensamentos, mas vai ter tanta porcaria”.

Ao conceder uma entrevista certa vez, ouviu de uma repórter a dúvida que percorre a cuca de muitos admiradores de seu trabalho: “Como um repórter de tamanha categoria se limita a falar de boizinhos e vaquinhas na TV?”. Zé Hamilton é certo no falar: “O Globo Rural transmite ao público a alma do homem que vive no campo. E você vai dizer que a alma do homem urbano é maior que a daquele que vive no campo?”. Eis um pouco da essência desse jornalista de face iluminada e conversa recheada de riquezas.

Cara e coragem de João Antonio


"A vida foi me dando porradas, me dando, até que eu aprendi a escrever em qualquer canto. Sem precisar de casa ou de quarto. Qualquer boteco é lugar para se escrever quando se carrega a gana de transmitir. Gana é um fato sério que dá convicção".



A frase não poderia ser de outro. João Antonio (1937 -1996), repórter das ruas, um trabalhador da imprensa alternativa, ou 'imprensa nanica', como diria no Pasquim, percebeu com a prática jornalística que ficar preso em uma redação com jornalistas engomadinhos não era lá sua vocação. A respeito dos colegas de profissão, ostentava uma visão depreciativa, quase furiosa :

"Comprado e vendido. Safardana e omisso. Apenas sobrevivendo numa sombra do boi vergonhosa, fina-flor da calhordice vigente.E sem utilidade pública nenhuma, diga-se de passagem (...). Acabará escrevendo elegante e bonito".

João Antonio amava mais aos deslocados, às personagens que viviam às margens da sociedade. Adorava vaguear São Paulo em busca de alguma estória que aos olhos comercialmente inflexíveis da imprensa seria inútil, motivo que o fazia enfurecido. Seu livro 'Abraçado ao meu rancor', de 1986, retrata bem o desgosto que tomou João Antonio ao notar que o 'Brasil verdadeiro não aparecia nas páginas dos jornais e revistas'.

Mesmo assim, João Antonio integrou a equipe da revista Realidade em 1966, talvez a única do período
que pudesse conceder o mínimo de liberdade à essa alma rueira que queria retratar 'o outro lado' da vida
brasileira a todo custo, e que não se entenda a expressão em sua forma eufemística, pois o jornalista, depois de seus anos como repórter na Realidade, abandonaria casa, salário, emprego e mulher em troca da matéria que adviria da conturbada condição de quem faz da rua o lar .

O elenco de personagens escalado por João Antonio mudou. Mendigos. Prostitutas.Paraíbas. Sinuqueiros. Pobretões. Uma gama de excluídos que (sobre)viviam às margens do sistema, mas que nas mãos -e olhos- de João Antonio ganhariam papéis centrais na tragédia que não deixa de ser cômica, dentro de suas paradoxais condições, de se sustentar uma existência nas ruas das cidades mais furiosas do país.

João Antonio parece ser movido por uma vontade de contar e contar, bradar a realidade até fazer as pessoas entenderem que nem todos vivem num mundinho confortável. Malagueta, Perus e Bacanaço, livro de1960, narra a existência dos 'invisíveis' ; o humor da obra não desvia o leitor das reflexões acerca da dura realidade vista na vida que se arrasta nas ruas.

Melhor definição não poderia vir senão da boca acervejada do próprio autor:

"Malagueta, Perus e Bacanaço é o último (conto) do livro e conta as andanças aluadas e cinzentas de três vagabundos, malandros, viradores numa noite paulistana. Quebrados, quebradinhos, sem eira nem beira, partem da Lapa. Há esperança. Arrumariam dinheiro, revirariam a cidade. Andam, jogam, caem, levantam, reviram subúrbios, de novo tropicam, ganham, perdem, deforram. Lapa, Água Branca, Barra Funda, Cidade, Pinheiros, Lapa.Como terminam é como terminam. Murchos, sonados, pedindo três cafés fiados".


O livro é apenas um exemplo da irreverente obra de João Antonio. Vale a busca das risadas, lágrimas e sobretudo de clareza de ideias que este ousado jornalista, repórter, mundano é capaz de proporcionar através de seus relatos em outras de suas obras. Dá-lhe João!

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Inspirações e experiências do New Journalism

A partir de 1960, o mundo assistia o caos das mudanças sociais que afetavam a sociedade daqueles dias. Guerra, assassinato, rock, droga e movimentos hippies constituíam uma fase incapaz de passar despercebida pelos olhos dos integrantes das grandes metrópoles e influenciaram as relações sociais. O jornalismo e seus escritores se encontravam entre aqueles habitantes e, com sua forma objetiva, não seriam capazes de descrever exatamente tudo o que cercava os seres humanos daquela época. Essa confusão, acentuada principalmente nos Estados Unidos, deu vazão a um tipo de escrita mais consistente e profunda, tentando atingir o nível de mudanças pelas quais a “terra do tio Sam” também atravessava naqueles dias.

Surgiam os novos jornalistas. Trazendo em suas bagagens a influência da ficção norteamericana e dos grandes romancistas, eles se dispuseram a contar à sociedade daquele tempo o que sucedia nos anos 60 e 70 e o que tudo aquilo significava. Era o auge da não-ficção criativa, considerado o maior movimento literário desde o renascimento da ficção americana dos anos 20 e que lançou as estruturas do Novo Jornalismo, uma tendência advinda do próprio jornalismo que trabalhava o fato como uma espécie de obra de arte. Mergulhados nas influências da ficção, os textos afloravam pelas mãos dos jornalistas e transportavam a realidade dos acontecimentos carregados de detalhes minuciosos ao leitor.

John Hersey, um dos precursores
do New Journalism
Foi John Hersey quem deu o pontapé inicial na disseminação do gênero pela América do Norte ao cobrir a Segunda Guerra Mundial de maneira nunca vista entre os jornalistas, assumidamente influenciado pela estrutura da ficção. Considerada a reportagem mais importante do século XX pelo Departamento de Jornalismo da Universidade de Nova York, o livro Hiroshima é o desenho de Hersey sobre uma paisagem devastada pelas bombas lançadas pelos Estados Unidos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945. O que torna a obra uma referência para o Novo Jornalismo, é, entre outras coisas, a intenção de Hersey em documentar o impacto da bomba sobre pessoas (e não sobre prédios) e a maneira como descrevia as situações. Nem mesmo as reações internas dos personagens escapavam de suas anotações. A inspiração de Hersey tinha nome e sobrenome: Thorton Wilder e sua obra A ponte de São Luís Rei. Foi a forma como Wilder relatou a queda de uma ponte de cordas, concentrando-se nas vítimas do acidente, que inspiraram a narrativa do jornalista.

Foi Tom Wolfe quem deu nome
ao novo estilo
de se fazer jornalismo 
Outro grande nome do Novo Jornalismo, Tom Wolfe, também foi arrebatado pela forma de escrita do romance-ficção. O entusiasmado observador de Nova York mergulhou de cabeça nas cenas urbanas instigado pela trilogia de James T. Farrell. O personagem Studis Lonigan teve sua história criada por Farrell de maneira tão instigante, que atraiu a atenção de Wolfe. O relato corajoso e franco do romancista sobre o crescimento humano, a partir do material bruto da vida de uma criança, acabaria dominando o estilo do jornalista em seus monólogos interiores. Os fatos não eram a principal preocupação de Wolfe, a ideia dele era registrar a cena acrescentando detalhes peculiares que outros classificariam como secundários.
A obra A Sangue Frio, de Trumam Capote, foi a mais lida
entre os novos jornalistas do Brasil da década de 60
O jornalista Truman Capote também acreditava numa narrativa que mergulhasse fundo nas cenas e na vida dos personagens. Ao ser convocado para cobrir o assassinato de uma família de agricultores em 1959 nos Estados Unidos, Capote inspirou-se na obra de Hersey e recriou os acontecimentos usando a voz do romance. Tendo dois assassinos como as únicas testemunhas do crime, o caso  transformou-se num desafio para o escritor que não usava gravadores e abominava anotações, contando apenas com a ajuda de uma amiga para registrar os relatos. A reportagem ganhou publicação na New Yorker em 1965 e bateu recordes de venda da revista. A história virou livro sob o título A Sangue Frio, e, segundo o próprio autor, inaugurava o romance de não ficção. A declaração provocou grande polêmica entre os críticos de seu país que chegaram a negar o lugar da obra no contexto literário, porém, devido o sucesso comercial do livro, a “nova” forma literária não tardou a conquistar seguidores. No mesmo ano, o livro foi traduzido e publicado no Brasil, inspirando os novos jornalistas que surgiam por aqui.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Dois poetas jornalistas: Gregório de Matos e Carlos Drummond

Poesia no jornal, o que você acha? “A poesia está nos fatos”, já dizia Oswald de Andrade.Tomei dois representantes dessa fusão maluca de um 'jornalismo versificado', disposto em forma de versos, e nem por isso menos ativo, reativo, combativo e informativo: características que, se não nascem com os jornalistas,ah, deveriam ser implantadas em suas cabeças durante os frágeis-falhos-falsos cursos de formação de nossos tempos.
 
Mais de um século separa o poeta baiano Gregório de Matos (1623 - 1696) do poeta jornalista escritor Carlos Drummond (1902 - 1987). Se são separados pelo tempo, não são em intenções. Ambos embutiam espécie de fúria política entreversos. No entanto, Gregório não poderia estar poetando, muito menos na forma como fazia, jornalística e política, numa época que a imprensa ainda era proibida no Brasil.

Por outro lado, Drummond passava por uma proibição diferenciada, pois foi durante o Modernismo, período de sua maior produção, que os gêneros jornalismo e literatura foram se fragmentando, tornando incompatível a escrita poética com os veículos impressos. Nem por isso Drummond deixou de ser jornalista em poesia :

Fato e repórter
unidos
re-unidos
num só corpo de pressa
transformam-se em papel
no edifício máquina
da maior avenida,
devolvendo ao tempo
o testemunho do tempo


(Trecho de “A casa do Jornal, antiga e nova”, 1973)

Já Gregório encontrou na poesia uma maneira de mostrar sua veia jornalista, revoltamente afiada, pulsando por liberdade de expressão. Após ser exilado em Angola por suas palavras, o poeta volta ao Brasil para rimar “ a Bahia que regurgitava no mais desatado desvario de costumes”, (como diz Segismundo Spina em sua reedição de 'A Poesia de Gregório de Matos').

Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos

De que pode servir quem se cala?
Nunca há de se falar o que se sente?
Sempre há de se sentir o que se fala

Qual homem pode haver tão paciente,
Que, vendo o triste estado da Bahia,
Não chore, não suspire, e não lamente?


(Trechos separados de "Aos Vícios")
 
Os escritos destas figuras marcam e demarcam contexto social, econômico e histórico inscritos em seu tempo. Hoje jogam-se sapatos na cabeça dos líderes (com certeza a cena do jornalista iraquiano jogando o sapato na cabeça de Bush será um marco histórico). Antes, atiravam-se palavras. E com efeito! Hoje... hoje falta coragem para um tiro certeiro na ousadia canalha dos líderes pilantras, faltam palavras para retratar a quietude que esconde a anomalia social.Hoje falta poesia de fato, de fato falta a poesia.
 
 

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Língu'ácida de Joel Silveira

                                                                                          
Foto:  Bel Pedrosa/ Folha Imagem

A caminho de uma entrevista com o jornalista Joel Silveira, no ano de 1999, um repórter resolveu por bem chegar duas horas mais cedo na casa desse velho combatente das letras. Só não esperava a grosseira receptividade:

- Vocês marcaram às 16h! – soltou o jornalista num resmungo quase mortífero.
Mas não se assuste. Quando se trata de Joel Silveira, o veneno das palavras já é velho conhecido. Eis um jornalista que sabia o que fazer com suas ironias, traduzi-las em texto ferino. No tempo da era getulista, os assuntos em relação à política e à vida particular dos Getúlios foram impostos como segredo de estado, nada a respeito deveria ser publicado nos veículos de comunicação da época. Oportunidade ideal para que Joel Silveira, o “víbora”, fosse à caça de outras pautas: a vida social e seus grã-finos que sobreviviam à custa da pompa.
Sergipano da cidade de Lagarto, o jovem Joel saiu com seus 26 anos de idade à procura de emprego na então capital federal, o Rio de Janeiro, no ano de 1937. Há tempos que seu pai já consumia o semanário Dom Casmurro e foi lá que o jornalista bateu primeiro, pedindo uma chance para também publicar seus escritos.  Em 1938, a convite de Samuel Weyner, passou a integrar a equipe de Diretrizes, um dos veículos mais respeitados do período. Foi quando nasceu sua primeira reportagem de sucesso: “Eram assim os Grã-finos em São Paulo”, publicada em 1943 causou burburinho no meio da sociedade tradicional paulistana.
Joel Silveira morreu aos 88 anos no ano de 2007,
vítima de câncer na próstata
Vale a pena ler a produção.  Joel literalmente se infiltrou na vida social da elite paulista e passou a freqüentar os lugares mais visitados do público-alvo de suas críticas. Um texto fino, é verdade, mas recheado de ironias, sutilezas, adjetivos matadores e metáforas pontiagudas, tudo para temperar sua reportagem. Em certa altura, explica francamente para o leitor o que era o conhecido “chá na Jaraguá”: “um ponto onde Fifi marcará encontro com Lelé para falar mal de Zuzu”. Os livros e a intenção dos organizadores em promover a cultura foram apenas coadjuvantes no fato que não escapou ao foco do jornalista.
Os intelectuais até tentaram, criaram a tal da “Bolsa do Livro”. Joel esclarece em poucas palavras: “Um pedaço de cartolina pregado numa parede da livraria. Um cavalheiro que tenha um livro raro para vender escreve o nome do livro e o preço na cartolina. Outro cavalheiro, que deseje adquirir uma raridade, faz a mesma coisa. Na tarde em que estive na Jaraguá, visitei a cartolina: o lado das preciosidades estava repleto.” A reportagem retratou muito da vida que os paulistanos abastados levavam no início do século XX. Joel foi tragado por aquele jornalismo ousado e literário e explorou a eficácia da narrativa irreverente. O veneno das palavras casou com a originalidade do jornalista, considerado até hoje como um dos pioneiros do fazer jornalístico-literário no Brasil.  E viva a víbora!

quinta-feira, 14 de abril de 2011

De alma arlequim

Roberto Rodrigues Vargas tem 47 anos e, há 40, acredita ter nascido com uma missão: desbravar as faces mais sombrias e trazer à luz os sorrisos da alma. Desde os sete anos de idade herdou do pai a arte circense. A partir de então, decidiu ser conhecido como o palhaço Pirulito.

Inscrita sob o código 3762-45 na Classificação Brasileira de Ocupações, a profissão aceita denominações variadas: “palhaço”, “clown”, “cômico de circo”, “excêntrico” e por aí vai. Para Pirulito, pouco importa a nomenclatura: se a plateia sorrir, o ego se encarrega do resto. Desde muito cedo acreditou na arte e tratou de tocar a vida montando e desmontando a lona de seu circo à procura do respeitável público.

Os convites vinham de toda a parte e o sucesso acompanhava o côncavo de tinta vermelha desenhado nos lábios do palhaço. Certo dia, a natureza deu um basta na rotina. Uma ventania de proporções catastróficas pôs abaixo anos de economia, depositados na cobertura “cor-sim-cor-não” (laranja e azul) do picadeiro. O abrigo das palhaçadas era só tristeza, nada pôde ser reaproveitado. Restava alguns poucos ganchos metálicos e cordas suspensas no ar. Não foi o bastante para continuar a caminho de outros palcos.

Sem a estrutura do circo, Pirulito acreditava no talento que possuía. Com maquiagem e fantasia debaixo do braço saiu a oferecer seus dotes em escolas, igrejas e casas de umbanda. “De tempos em tempos eles organizavam festinhas dentro do terreiro, a descontração ficava por conta das minhas piadas”, justifica. Ele conta a preferida do público: “Se o cachorro tivesse religião, qual seria? Cão-domblé”. Cobra R$ 50,00 por apresentação, o que considera um preço justo. Não foi o que achou o pastor de uma igreja abrilhantada pela performance do palhaço num evento com os fiéis. Até hoje, Pirulito espera receber das mãos do líder o pagamento pelas horas de diversão.

Crente convicto, Roberto pediu a Deus mais um talento, que outros colegas seus parecem ter: o político. Não que desejasse o poder máximo da República. Suas pretensões eram bem mais modestas. Desejaria apenas ter ocupado uma das cadeiras na Câmara Municipal de Jandira, cidade em que reside desde que nasceu. Entre 113 mil eleitores, Pirulito convenceu 26 e alcançou o 179º lugar como vereador, num total de 208 candidatos.  Feito comemorado pelo artista circense.
Ele fala sobre o desvirtuamento da profissão. Basta um escândalo na política - e eles não faltam - para que muitos coloquem o nariz vermelho e saiam às ruas para protestar. “Esse nariz representa uma profissão digna!”, reclama. Os escândalos protagonizados por prefeitos, governadores etc., não são uma palhaçada na visão de Pirulito. "Aquilo é coisa de bandido, não de palhaço”.

Indignado, resolveu desistir do caminho político e render-se às festinhas de aniversário. É delas que sai atualmente o sustento para a esposa e a filha com seis anos de idade. Vira e mexe aparece alguma mãe desesperada pela atração mambembe na festinha do filho por um preço camarada. Pirulito não recusa trabalho e é bastante requisitado pela fama de facilitar a vida de seus clientes. Oferece desconto, aceita fiado e, por motivos óbvios, acaba fazendo shows de graça.
O palhaço não gosta de falar sobre suas desgraças, prefere rir e contar uma piada: “Sabe o que Papai Noel responde quando uma criança pergunta se ele roe unha ? Rou rou rou rou rou rou!” Diante da timidez da repórter, resolveu ele mesmo rir. Um sorriso amarelo, é verdade. Mas é melhor que nenhum. No reflexo do riso, surge a melancolia. “Tenho ainda um desejo para a morte, ser velado com cara de palhaço”. Segundo sua imaginação, as pessoas chorariam de tristeza e depois iriam rir da surpresa – e ele riria por último.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

A revolução em Realidade

Diferente das revistas de sua época, Realidade estampava em suas capas imagens que fugiam dos belos rostos femininos
                                                                              
Quando o Brasil entrava em seu terceiro ano de regime militar, em 1966, chegava às bancas a revista Realidade, capaz de expressar um jornalismo inovador e que conquistou fama de publicação “revolucionária” por reproduzir reportagens ousadas sobre os problemas sociais que o país atravessava naquele período.   

Apontada como um marco na história da imprensa no Brasil, a revista reuniu grandes nomes do jornalismo brasileiro influenciados pela corrente do New Journalism norte americano, um tipo de escrita iniciada pelo jornalista Tom Wolfe que empregava recursos literários para narrar eventos não ficcionais. Nomes como Eduardo Barreto, José Hamilton Ribeiro, Granville de Ponce, Woile Guimarães, Sérgio de Souza, José Carlos Marão, João Antônio, Dirceu Soares, Luiz Fernando Mercadante, Mylton Severiano da Silva, Otoniel Santos Pereira, Roberto Freire, Octavia Yamashita, Eurico Andrade, Paulo Patarra, Narciso Kallili e Carlos Azavedo afloraram uma produção jornalística singular, que forneceu à reportagem brasileira uma dimensão reveladora e marcou o gênero jornalístico no país.

A linguagem convencional não se igualava aos recursos discursivos utilizados na revista, conduzidos para formas literárias e ficcionais de narrativa que ampliaram sua penetração junto ao leitor. Realidade revelou ao seu público significados de uma época de mudanças e forneceu informações de perspectiva global, fomentando sua própria existência como ferramenta de análise do cotidiano. O veículo fugia de um suposto jornalismo objetivo quando priorizava textos de profundo envolvimento por parte do jornalista, permitindo uma escrita mais solta e livre de estruturas pontuais. A inquietação intelectual vivida pelo país naquela década reforçava a possibilidade de superar os limites do padrão de linguagem informativa, e o New Journalism apresentou a saída para essa limitação quando propôs um texto flexível e repleto de detalhes, baseado nos elementos narrativos das obras ficcionais.         

Esse conjunto de ferramentas serviu de base para as reportagens de Realidade que inauguraram a essência do “novo” jornalismo no Brasil. O quadro político do pós-guerra, o fenômeno populista, as questões nacionalistas, as eleições e o aumento da participação das massas urbanas no cenário social só fez aprofundar os rumos desse novo estilo de escrita. No momento em que a simples objetividade da imprensa carecia de recursos para acompanhar o ritmo da vida nacional, o jornalista dos anos 60 trouxe consigo a perspectiva de mudança, inquietação e revolução e sentiu a necessidade de traduzi-la nos textos. E foi neste contexto que a revista nasceu, na tentativa de revolucionar a sociedade a partir da reinvenção da linguagem jornalística.