quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Um protesto offline

Do alto da estação de trem dava para avistar poucos manifestantes. Amontoados na única ponte da cidade de Jandira que dá acesso à Rodovia Castelo Branco, os servidores da educação faziam greve. Formando um pequeno mar de sombrinhas (porque chovia naquela manhã), reivindicavam uma lista de 12 petições.

Sob a mesma garoa, o protesto reuniu cerca de 700 servidores, o que representaria a ausência de professores nas salas de aula de Jandira durante a manhã. O fato realmente aconteceria, não fossem os estagiários e profissionais 'desqualificados' - segundo os próprios manifestantes - que estavam cobrindo a falta deles durante o protesto, o que fez nascer o 13º tópico da paralisação: a ilegalidade do prefeito em distribuir professores substitutos pelas escolas.


A cena era atípica. Os carros e ônibus acostumados a cruzar diariamente o mesmo viaduto às nove da manhã tiveram que puxar o freio de mão. Para os funcionários que se deslocavam para o trabalho, a alternativa foi abandonar o ônibus e partir de trem ou, esperar, pacientemente, a liberação do acesso.


Ouvi um dos líderes da manifestação atirar palavras de indignação contra a prefeitura através de um microfone, amplificadas na caixa de som do caminhão que fazia as vezes de palanque. Parecia um comício. Certo momento, o ativista-mor tinha dificuldades para entender o que diziam os manifestantes e a confusão era divulgada em potência sonora: "peraê, gente, cada um fala de uma vez se não eu não consigo entender", reclamou. Logo em seguida, tentou a linguagem corporal, na tentativa de afinar a comunicação: "quem quer fazer a passeata agora levanta a mão!", só que ficava difícil para os servidores acenarem por debaixo do guarda-chuva.


Colada na cidade de São Paulo, Jandira é um município de ritmo interiorano e abriga muitos trabalhadores que convivem nas fábricas e escritórios paulistas. É uma das tantas cidades-dormitórios que compõe a Grande São Paulo, servindo de alternativa para quem quer trabalhar na cidade da economia brasileira sem abrir mão de um lugar barato para viver as horas que restam da rotina - antes e depois de bater o ponto na "firma".


Parte dos manifestantes são os responsáveis pela educação escolar dos filhos de muitos desses trabalhadores. São professores da rede municipal de ensino com a árdua tarefa de educar crianças acostumadas com a ausência dos pais que trabalham longe. Insatisfeitos com as condições de trabalho, eles, os professores, resolveram que era a vez deles de descer às ruas para protestar. Da lista, metade dos tópicos envolvia dinheiro: salários melhores, vale transporte, aumento no vale alimentação e mudança na forma de repasse das receitas para a educação.



É claro que, nos tempos de hoje, protesto sem mídia não faz verão. O máximo que a manifestação conseguiu foi um release em uma agência de notícias, com seus 60 seguidores no Twitter e 138 'curtidores' na fan page do Facebook. Muito pouco para quem queria fazer barulho (ao menos) nas redes sociais. Foi pequeno o movimento offline em Jandira. No dia seguinte, a greve já havia encerrado com vitória para o lado do sindicato, provando que não são só de curtidas online que sobrevive ou funciona um manifesto.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Política de cantada

Vibrantes sobre o teto de um caminhão, a equipe de um dos partidos políticos de Jandira cumpria mais um dia de campanha no centro da cidade. É véspera de eleição municipal. Bandeiras borboleteavam no ar, enquanto as caixas de som anunciavam a mensagem e a música do político à população. Logo abaixo, ali na rua, carros e ônibus seguiam pela faixa que restava para quem não gosta de seguir em marcha lenta.
Quem mora no município de Jandira sabe que, em época de eleição, ruas, calçadas e muros são tomados por cartazes, banners, faixas e também carros de som. Sem acesso à campanha eleitoral televisiva, resta aos candidatos jandirenses apelar para o bom e velho jingle musical, na esperança de fixar seu número na memória dos eleitores.  Seja em carrinho, carrão ou caminhão, dá-se um jeito de acoplar uma potente caixa de som ao veículo e sair pela cidade espalhando a melodia. Os ritmos são variados: forró, axé ou pop. Vale tudo na corrida pelo voto.
Isso de o candidato sair por aí divulgando sua campanha por meios musicais é fato recente. Antes de surgir a prensa – inventada por Guttenberg em 1450 –, o candidato precisava possuir retórica e boa aparência para ser bem-sucedido na vida pública. Com o advento da invenção, foram os panfletos que passaram a transportar as ideias e propostas dos candidatos, sendo popularizados apenas no início do século XIX – já que o alto custo e a escassez de matéria-prima dos folhetos limitavam a produção em larga escala.
Mas foi com a campanha de Jânio Quadros, em 1960, que a utilização dos jingles nas campanhas eleitorais do Brasil teve seu auge. Além do jingle “Varre, varre vassourinha”, o político avançou nos limites do marketing eleitoral da época ao utilizar uma vassoura como símbolo de sua candidatura, prometendo “varrer a bandalheira” do país, além dos broches de metal – também em formato de vassoura.
Um pouco mais tarde, em 1985, José Maria Eymael do PSDC disputou a primeira eleição direta à prefeitura de São Paulo após a ditadura militar. Apesar de nunca ter deslanchado, o candidato possui um dos jingles mais famosos do Brasil. Possivelmente, muita gente não se lembra das propostas e cargos que ele já ocupou, mas todos sabem que “Ei, ei, Eymael” é “um democrata cristão”.
Se as melodias políticas em época de campanha funcionam ou não, isso ainda é um mistério.  Em tempos digitais, o marketing para se vencer uma eleição pode ter página no Facebook e até seguidores no Twitter, aproximando candidato e eleitor por meios também virtuais. Apesar de todas as ferramentas disponíveis para promover uma campanha eleitoral – sejam elas impressas, sonoras ou pela web – ainda é bastante válido o contato pessoal.
Não é raro ouvir de eleitores que o voto garantido é para o político mais chegado. Aquele que, mesmo em época de mandato, dá um jeito de facilitar a vida de algum doente em tratamento (conseguindo uma ambulância, por exemplo) ou sempre ajudando em alguma emergência do dia a dia. Prova de que a ação pode valer mais que mil palavras. Mais que as notas musicais de um ye-ye-ye eleitoral.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Respeito aos mais novos



Batatas, manjericão, abacate, ovos de codorna. Minha cabeça oscilava entre contornos doces de frutas e obscenos de leguminosos berinjela.  Suco , polpa, uva. Raptar sacolinhas do sacolão porque a indústria vietnamita tem que faturar com sua produção de sacolas coloridas. Vejo, entre amarelo-melão e vermelho-tomate, vietnamitas verdes de mãos calejadas costurando lona desenhada para mandar ao Brasil. Gosto das sacolas dos vietnamitas. Mas onde vou colocar o cocô do gato senão nas retrógradas sacolas plásticas? Os mercadinhos, super e hipermercados estão faturando um bocado com desabastecimento plástico. Preciso contar para eles que, a cada vez que meu gato caga, gasto R$0,20 centavos. Enfim, roubei algumas sacolinhas hortifrutis numa boa e vejo que cada vez mais as pessoas fazem isso. Belo Horizonte se orgulha em ser o primeiro estado a conseguir abolir o uso das sacolinhas antes mesmo da lei antisacolinhas valer para valer – o povo daqui se amarra num costume. Amarra mesmo, se prende, se enforca com uma sacola plástica na cabeça. A minha avó não me deixava tomar banho sozinha. Como não havia touca de banho na casa dela, eu amarrava a sacolinha plástica na cabeça. Hoje a impermeabilidade capilar me custaria R$0,20, assim como o recolhimento da bosta do gato.

Alho sem casca? O dinheiro vai dar? O iogurte aqui está mais barato que no mercado! O chuchu mais barato que na feira. Carrinho cheio afinal e bolsa cheia de sacolas vazias. O sacolão disponibiliza carrinhos para serem utilizados apenas no recinto, diz a plaquinha metálica ao lado do caixa, pois na época em que não havia restrições, avisos e catracas cidadãos não honrosos andaram “indisponibilizaram carrinhos”. Até entendo. Será que eram manifestantes do movimento POSCHA (Ponha o Chuchu na Sacolinha do Hortifruti, Arre), contra a indisponibilização de sacolinhas plásticas no mercado?


Além das reflexões a respeito dos novos hábitos de consumo da civilização, passava pela minha cabeça uma dúvida cruel: que cozinhar para o jantar, meu Deus? Entrei na fila do único caixa em que cabia o carrinho de compras que foi conseguido com muita dificuldade, da minha parte, e muita distração, por parte daquela jovem mulher que deixou o veículo dando sopa para pegar pepinos. Encaixo o carrinho na fila, impedindo a passagem de outros motoristas, atravancando o tráfego no corredor cheiro-verde, localizado entre a prateleira de doces mineiros e o freezer de leite em promoção. Mineiro adora fechar o cruzamento, uai. Vá na Afonso Pena para você ver. Retirei abacaxi, manga, jiló do carrinho. Limão, maçã, mamão, coloquei os saquinhos perto do caixa.

- É. O que adianta ter caixa para idosos se os mais novos não respeitam?

Enfurecida, a senhorinha de cabelos brancos ralos atrás de mim arregalou os olhos pronta para arrancar minha juventude com um golpe. Tive medo de que ela me violentasse com o punhado de quiabos que estava segurando entre as mãos enrugadas.

Óh, pobre senhorinha. Pobres senhorzinhos que haviam sido perversamente trapaceados pelo vigor da minha juventude que, cá entre nós, não estava aguentando nem o peso 1 quilo de cenouras. Precavendo-me contra o destino do quiabo da senhorinha, achei por bem não lhe dizer que ela certamente devia estar mais descansada que eu. Preferi dar uma de vítima sem-razão de um incidente - único meio de convencer velhinhas rebeldes que me veio à cabeça. Quis lhe mostrar minhas sinceras desculpas.

- Oras, eu não tinha visto, estou com vergonha, vou passar à fila ao lado, onde estava com a cabeça, que bobeira a minha, entrar na fila de idosos, gestantes e deficientes do sacolão de frutas e legumes, eu não quis tirar vantagem, estava distraída, desempregada, inclusive. Desculpe-me.
- Os mais jovens não têm respeito.

- Senhora, eu falei que foi sem querer. Pode me dar licença para ir ao caixa ao lado?
Ela cochicha alto com o senhor detrás:

- Há! Fingida. Ela finge que não vê, não respeita, onde já se viu.

- E a senhora não acredita no que eu falo e está me deixando encabulada, isso também é falta de respeito.

- Nós, os mais velhos, não precisamos respeitar vocês, os mais novos. Vocês que têm que nos respeitar.

O hortifruti estava mobilizado. Donas de casa pararam de pegar alfaces para ver nossa rixa. Roxa como a casca de uma batata roxa, peguei silenciosamente a fila do caixa ao lado. Enquanto a senhorinha continuava a lamentar o desrespeito aos mais velhos, a fila em que eu estava desatou a andar, talvez pela rapidez da caixa que conduzia minha fila, ou então pela falta de pressa da caixa da fila dos idosos. Estava eu acabando de pesar meus jilós, de soslaio só vendo a posição da senhorinha reclamona à fila. Peguei uma nota para pagar as frutas e umas moedas mais para sacolinhas biodegradáveis - antigas sacolinhas plásticas - para os dejetos do gato, caso as do sacolão não fossem suficientes para a lambança da semana. Compras nos ombros, caminho até a porta. Espero uns dois segundos, fito bem a senhorinha, dou-lhe um sorrisinho vencedor e um aceno. Tchau.

Dizem que daqui a alguns anos a previdência social não vai dar conta de suas despesas. Nosso Instituto de Geografia e Estatística prevê rumos caóticos para a providência: no ano de 2050 serão 64 milhões de idosos, ultrapassando o triplo dos 20 milhões de hoje. Graças à boa alimentação. Graças aos vegetais. Pelo jeito que a fila anda, sobretudo nos hortifrutis, pode-se notar que as estatísticas estão certas. O processo está mais do que em curso.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Made in USA

Os produtos importados que prometem dar fim à batalha feminina de cada dia

Numa ensolarada tarde de domingo, cerca de 13 mulheres saíram de suas casas dispostas a conhecer os milagres que a tecnologia doméstica tem a oferecer. Daniela*, lá pelos seus 27 anos, é especialista em palestras e, junto com o marido, anda o Brasil afora em busca de lugares para divulgar produtos que vão desde alvejante para roupas à laxante em pó. Tudo para facilitar o dia a dia das mulheres ditas 'do lar'. Por volta das 15h, Daniela estacionou seu carro - último modelo da linha GOL da Wolkswagen - num dos bairros do município de Jandira, na Grande São Paulo, munida de um kit, no mínimo, curioso: sabão em pó, cremes para o corpo, shakes dietéticos, pílulas vitamínicas e barrinhas de cereal.

A palestrante trajava o estilo "esporte fino" e destoava do figurino dia a dia das demais mulheres: saias floridas, shorts e chinelos de dedo. O palco das apresentações era a sala de Alessandra Rodrigues* - uma das interessadas em revender a linha de produtos fabricada nos Estados Unidos -, que abriu as portas de seu lar para as vizinhas do bairro e para os importados norte-americanos. Pendurados na parede da sala, um violão preto de apenas uma corda, um tamborim e um relógio são-paulino - desfalecido às 3 horas e 15 minutos (não se sabe se da madrugada ou da tarde por falta de pilhas) - decoravam o ambiente. Sob a mesinha localizada no canto da sala, uma toalha de mesa amparava os produtos.

Equilibrando-se em um salto alto, a palestrante agarrou-se à simpatia - essencial ao marketing tête-à-tête – e falou das dificuldades enfrentadas pelas donas de casa, o que incluía as manchas de graxa na roupa do marido mecânico (é preciso admitir que a maioria deles possui vocação para tal ofício) e do inevitável molho de tomate na toalha da mesa. Ela, a palestrante, até entendia das agruras do trabalho doméstico, mas de longe. Graças a empregada doméstica que mantém em sua casa, o cheiro do sabão se resume às apresentações que realiza.

As substâncias, embora trágicas, não bastavam para mostrar a eficiência do sabão, pois Daniela preferiu mesmo apelar para o iodo. "Esse sim, difícil de remover". No primeiro teste, a palestrante encheu uma garrafinha de água e forçou a imaginação das participantes. "Finjam que é uma máquina de lavar", atirou a frase no ar segura da criatividade alheia. Pediu a uma das mulheres presentes que segurasse a garrafa. Logo em seguida, esguichou o líquido escuro dentro do objeto, transformando o H2O num breu total. Três pitadinhas do "poderoso sabão em pó" e chacoalhadas na mesma medida transformaram a mistura num líquido completamente branco. A plateia, deslumbrada, foi ao delírio. Mas Daniela queria mais. Insistiu em pingar novas gotas de iodo no líquido engarrafado até que o branco ficasse sempre branco. E em todos os cinco testes, a mulherada vibrou.

O próximo passo foi engraxar a mão de uma das convidadas. De início, a atitude desenhou caretas de nojo no rosto das participantes. A voluntária não sabia, mas dali a pouco ela e suas companheiras de labuta doméstica conheceriam o poder do "super detergente". Algumas gotas do produto - e mais cinco minutos de esfrega-esfrega - e as mãos da participante voltaram a cor de antes. Sucesso total. Agora, o clima era só sorrisos. Provada a eficácia dos produtos de limpeza contra a sujeira-nossa-de-cada-dia chegava a hora de resolver outra questão não menos feminina: a estética. Primeiro, Daniela apresentou diversos cremes para cada parte do corpo. Depois, as pílulas miraculosas que prometem desintoxicar como um alvejante a sujeira acumulada no organismo.

"Quem aqui consome pelo menos sete frutas diferentes todo dia?", indagou a palestrante. A recusa foi unânime. O motivo não era para pânico, pois, como era de se esperar, Daniela tinha a solução. O catálogo de produtos era moderno. No caso das frutas, nada de cores, sabores ou aqueles formatos excêntricos esculpidos pela própria natureza. A última palavra na ingestão de vitaminas era o consumo de cápsulas de acerola ou o chamado "Daily", uma mistura encapsulada do que de melhor as frutinhas têm a oferecer. Afinal, para quê sentir o gosto da polpa se tudo que você precisa é ingerir um invólucro branco recheado de um pózinho saborosamente insípido? Para quem não abre mão do sabor, shakes de chocolate ou morango faziam a alegria das que desejavam perder alguns quilinhos. "E não se esqueçam: deu vontade de comer uma coxinha? Coma uma barrinha!", orientou a palestrante, indicando, inclusive, o sabor de sua preferida: chocolate com morango.

Minutos depois, a sugestão da palestrante para turbinar a dieta alimentar ganhou status de solução contra o surgimento do câncer. "Vocês sabiam que a carne de frango está entupida de hormônios?", informou Daniela. Segundo ela, se antigamente a ave demorava algumas semanas desde o nascimento ao abate, hoje em dia o frango pia e engorda por pelo menos nove meses até ter sua carcaça girando nos disputadíssimos fornos de padarias. "A ração oferecida aos frangos está cheia de hormônios, e isso tudo vai parar na barriga do consumidor, o que pode provocar o câncer", alertou. O momento não poderia ser mais ideal para divulgar o alívio proporcionado pelos laxantes. Não importa se a questão eram os hormônios ou excesso de gordura escondidos nos alimentos. Um sachê antes de dormir e - batata! - o intestino preguiçoso amanhece 'naquele gás', disposto a travar uma longa conversa com o vaso sanitário.

E, por fim, já que o sorriso funciona como um cartão de visita, não poderia faltar um produto que provocasse o efeito branqueador. Para esta apresentação, a palestrante decidiu comparar duas marcas diferentes de creme dental. Uma, bastante conhecida, não deu sorte. Falhou na primeira espalhadinha sob a embalagem de testes - feita de papel. No caso do produto vendido por Daniela - surpresa! - não houve decepção. A pasta de dente vinda dos Estados Unidos provou que age sobre as amareladas manchas de café e cigarro sem comprometer o esmalte dental. Podia-se assistir a alegria da plateia por tamanha eficiência, embora uma delas, com seus quase 90 anos, sequer possuía dentadura.

A essa altura, todas as donas de casa já estavam convencidas do poder 'sobrenatural' da cartela de produtos apresentados naquela tarde de domingo. Daniela falou de valores e formas de pagamento. Disse que em dólar, a coisa era cara, mas que em reais, tudo ficava mais baratinho. O "kit madame", por exemplo, - contendo uma caixa de sabão em pó, alvejante e detergente - não saía por menos de R$ 120,00. A plateia, embora de cunho doméstico, não ficou alheia aos discursos da palestrante. No caso da pasta de dente, por exemplo, uma das mulheres presentes ouviu de Daniela que a marca desaprovada no teste causava sensibilidade. "Nunca senti", deixou escapar uma das senhoras de dentes. Ninguém deu ouvidos. Talvez o argumento não fosse suficiente. Afinal, o produto podia ter sido fabricado no Brasil.

[*Os nomes foram substituídos]

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Brasil do interior nas Tranças de Maria

O filme brasileiro “As tranças de Maria”, baseado no poema da escritora Cora Coralina, conta a história de uma moça fadada à luta contra a rejeição e o autoritarismo do pai no interior de Goiás. A jovem de pele morena e cabelos negros na altura do tornozelo despertam a atenção de Izé da Badia, conhecido como o rei dos vaqueiros entre os moradores da região. A partir daí, as cenas apresentam um cenário de natureza, simplicidade, e os muitos pensamentos de Maria sobre questões comuns para a época (1950) e o contexto no qual vivia.

Logo de início, o espectador se depara com os devaneios de Izé à procura de sua amada. A situação é narrada e não permite grandes falas ao vaqueiro, que se encontra sujo e maltrapilho. A deixa do diretor vai ser esclarecida ao final do longa-metragem e confunde um pouco aqueles menos pacientes, os que desejam saber logo de cara a história ou a proposta do filme. A personagem principal, Maria, é a próxima a ser apresentada e surge abastecendo um barril de água no rio próximo de sua casa.

Para o bom entendedor, a cena mostra a dificuldade do povo local no acesso à água e o espaço também se assemelha a uma espécie de “oásis” diante da paisagem seca e alaranjada de pó, típica do centro-oeste brasileiro.
É preciso destacar que as vozes dos personagens demoram a se manifestar, e deixa no ar a intenção do diretor em nos transportar aos costumes caipiras, à ordenha das vacas, às casinhas de pau-a-pique e o silêncio inerente à vida no mato. A constância da monotonia pode irritar os imediatistas, além de testar a paciência dos “menos-pacientes”.
As falas são tão escassas quanto os pensamentos, que também ganham voz. E é num dos pensamentos altos de Maria que conhecemos seus sonhos, um deles mais significativo para se compreender a personagem: “Sonho com uma vida que não conheço, mas não sei como. Minha alma deseja algo que eu ainda não sei”. Ancorada no balanço de uma árvore, a moça de tranças gigantescas revela o interior de uma vida incomodada com a realidade que a cerca.

Maria e Izé da Badia se encontram diversas vezes durante o filme e o moço, de boa aparência, não disfarça o interesse que tem em se casar. Era importante para as mulheres do interior o casamento bem sucedido, ficar para titia não estava entre as preferências femininas da época.

Com Maria, tudo foi diferente. Os mandos e desmandos do pai dentro de casa repugnaram a possibilidade conjugal na visão da filha. Ela não imaginava para si um destino adornado de filhos, fogão e eterna submissão. Não. “Pai pensa que eu não tenho querer”, dizia consigo mesma, ainda que fosse um desafio afrontar a obediência ao pai. A união amorosa é acertada pelos pais para alegria de Izé e preocupação de Maria, que jamais se entrega ao marido como mandam as leis do matrimônio.

A justificativa para tal atitude vem revelada por meio de outro pensamento: “Minha alma não é desse mundo”. Nesse ponto, a situação também retrata o fato de que as filhas mulheres não tinham chance de escolher o próprio cônjuge, geralmente aceito pelo pai da noiva que considerava a possibilidade do contrato favorecer também a família.
Atormentada, a protagonista da história foge o quanto pode das mãos do próprio marido. Ela descobre que no rio vive uma cobra grande capaz de engolir qualquer animal de porte médio. É a chance que procurava. Levada pelos conflitos do porquê de sua existência, Maria decide se entregar às águas do leito, deixando para trás uma verdadeira angústia sobre a família, que passa à procurá-la incansavelmente por todos os lugares daquele pedaço de chão.

Izé, coitado, recebe da situação o transtorno mental e fica louco. Sai a buscar sua amada como um andarilho sem rumo até receber das mãos de uma curandeira as tranças de Maria, retiradas da barriga daquela cobra, agora morta pelos homens da vila. O filme termina com o narrador descrevendo a cena em que Izé da Badia faz das tranças de seu grande amor os laços que iriam conduzir seu cavalo para o resto de sua vida.
Como todo filme brasileiro mais antigo, não se pode esperar grandes efeitos potencializados pela alta tecnologia. Tudo vai passando de maneira simples, exatamente como era a vida no campo. O longa tem momentos bastante pausados e foge da lógica hollywoodiana. É um filme que apresenta uma história de amor (não foge à estratégia dos romances), mas não só isso. O Brasil de então, por volta de 1950, também é conhecido pela face cinematográfica do poema.

O clima do cerrado, os modos de levar a vida em sociedade, os questionamentos acerca do casamento, do autoritarismo, são exibidos para conhecimento do espectador, fornecendo a ele a chance de refletir sobre determinada época e, quem sabe, comparar com o momento que se vive. O filme mostra que não importa o lugar: todos as pessoas têm um destino a trilhar. O de Maria, obscuro de início, ao final foi um só: afagar as mãos daquele que realmente amou sua existência, Izé da Badia.
“Duas tranças primazia.Macias de luvas-mão,
Presas ás cambas de seus freio niquelado,
Em prata fina banhado.E o Izé tinha nas mãos,
Todos os dias, o sedenho da sua noiva Maria.”

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Gotas de Eliane Brum

"Na internet, as pessoas gostam de ler textos longos.
Desde que eles respeitem sua inteligência"
Há mais de 20 anos, a jornalista Eliane Brum já acumula cerca de 40 prêmios nacionais e internacionais por fazer da reportagem uma arte. Iniciou sua carreira no Jornal Zero Hora de Porto Alegre (RS) e mais tarde passou a integrar a revista Época, mantida pela Editora Globo, em São Paulo. Às vésperas de lançar seu primeiro livro de ficção, intitulado "Uma duas", quarta obra de sua carreira, a jornalista diz estar feliz em encarar mais um desafio. Ao contrário das outras três publicações -"Coluna Prestes - o avesso da lenda", "A vida que ninguém vê" e "O Olho da Rua" - em que Eliane Brum retrata o que a realidade tem a oferecer, dessa vez, as palavras serão dedicadas à ficção.

Eliane Brum não busca os grandes, prefere os anônimos. "Eu acho que são as histórias mais interessantes, além disso, a escolha quebra a lógica da pauta", justifica. Sua observação minuciosa e a linguagem literária adotada para revelar os fatos fazem da jornalista um nome forte entre os praticantes de um jornalismo diferenciado no país. Ao perceber a profundidade com que Eliane Brum trata suas histórias, foi difícil resistir a oportunidade de encontrá-la.

"Ao contar minhas histórias, tento descobrir o que move a vida das pessoas". A frase ecoou no Grande Auditório do Centro de Convenções Rebouças na última quarta-feira (26/05), em São Paulo. O olhar sensível de Eliane Brum pôde ser comprovado numa das mesinhas da lanchonete ao lado do espaço, logo após a palestra, em que a repórter nos contou um pouco mais de sua visão sobre o fazer jornalístico no Brasil.

A jornalista cumpriu o trato firmado por e-mail. Naquele dia, desejávamos saber o que movia sua paixão pela arte da escrita e, principalmente, da reportagem. Ela conta que, na infância ouviu histórias demais, a partir de então foi estimulada a contar seu ponto de vista sobre os acontecimentos. "Fui conhecer o New Journalism muito tempo depois de ter concluído a faculdade de jornalismo", revela.

A intuição nasceu do contato com a literatura. Daí para o relato jornalístico-literário foi um pulo. É difícil se adaptar ao padrão objetivo, no sentido da linguagem, quando a paixão pelo subjetivo fala mais alto. "Mas isso não dá licença para ficcionalizar o relato jornalístico", lembra a repórter. Na faculdade, e já no último semestre, Eliane Brum descobriu que tinha certa aptidão para humanizar o texto quando resolveu escrever uma matéria a respeito de todas as filas que um ser humano enfrenta desde o nascimento até o fim de sua existência.

Mais tarde, a jornalista seria adimitida no jornal Zero Hora, onde sempre procurou recortes diferenciados ao retratar a notícia. Ela fala da liberdade para produzir as grandes reportagens no Zero Hora. "Nunca tive dificuldades quanto a isso, acho que foi sorte. Meu editor-chefe pediu que eu produzisse alguns textos sobre o cotidiano e me deixou a vontade para dar ao assunto o foco que eu desejasse". Na revista Época, o mesmo livre-arbítrio seria concedido à Eliane Brum, que admite jamais ter sido obrigada a cobrir qualquer pauta que não a interessasse.

Sobre a internet, quer provar que é possível grandes textos no ambiente que parece exigir leitura rápida. "É possível a grande-reportagem na internet. Quem foi que disse que na internet só podem ter textos curtos? Tenho um texto publicado na Época online chamado "Minhas raízes são aéreas", essa entrevista tem 63.000 caracteres, o que equivale a quase 30 páginas de revista, e é a minha coluna mais lida nos últimos dois anos". Ela acredita que a internet tem uma lógica muito favorável à publicação de grandes reportagens, pois não se limita ao espaço nem ao número de folhas que deve ocupar.

Por opção, hoje a jornalista não figura mais entre a equipe de Época. Em 2010, Eliane Brum conta que houve grandes mudanças na sua forma de ver a vida. A reviravolta aconteceu por causa de uma de suas reportagens em que acompanhou Alice de Oliveira Souza, uma merendeira que descobriu o câncer quando finalmente iria descansar à sombra da aposentadoria. "Descobri naquele momento que a única riqueza que temos de verdade é o tempo, e eu queria me reapropriar totalmente do meu".

Depois do encontro com "Ilce", a jornalista admite ter outros olhos. Principalmente, em relação à vida. Sua missão é transmitir experiências e histórias por meio de pessoas supostamente comuns, aquelas que, aos olhos da grande mídia, não merecem virar "notícia". Em suas mãos, o aspecto "comum" ganha brilho e cor. Em seus textos, percebe-se a importância dada a operários, faxineiras e merendeiras. Segundo a jornalista, são eles os que realmente constroem esse país.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Se esse Fusca falasse...

Atire a primeira pedra quem nunca preservou aquele velho artefato com apego inestimável. O mesmo que abriga gerações de traças e já faz história pela ferrugem - esta fiel companheira desde o fim da juventude - vê a perenidade escorrer pelo tempo. Mas, nem tudo está perdido. Até mesmo a mais ínfima das substâncias físicas, a pleno vapor da corrosão, pode resistir ao óbito quando ingressa no caminho da reforma. É deste princípio que sobrevive o Fusca 1970 do pedreiro Cristiano Alves, conquistado no ano de 2005 a duras pás de cimento.

O carro é moeda de troca. Foi porque Cristiano ergueu um muro na casa do amigo que a peça veio parar em suas mãos. “Ele pediu que eu levantasse um muro na sua casa, em troca, prometeu, me daria o Fusca. Foi amor à primeira vista.” Depois de um tapa no visual, o carro ganhou cara nova e um nome: “Cara Preta”. Explica-se. A obra tem impressa na lataria cores opostas: o preto e o branco. Não à toa. Corinthiano convicto, o contraste é a combinação preferida do dono.

Mais branco do que preto, o Fusca carrega peculiaridades: embreagem quebrada, faróis queimados, arames seguram o assoalho e uma lata de tinta serve de banco-passageiro. Pasme: segundo Crisitano, o carro leva diariamente seus oito amigos ao trabalho.

Frente à falência do limpador de pára-brisa, um deles resolveu dar sua contribuição. É Raimundo Nonato quem salva a turma. Em dias tempestuosos, a invenção do limpador de pára-brisa manual faz sucesso entre os passageiros do automóvel. “Amarrei um barbante de cada lado e, quando a chuva aperta, é só puxar de um lado para o outro”. Reformado? Não para Rejane. Casada com Cristiano, a empregada doméstica crê que se existe um lugar certo para o carro, esse lugar é o ferro-velho.

Ela desabafa os apuros que sofreu quando ainda subia na “fubica” – é como se refere quando fala do carro. “Passamos numa curva muito fechada. Me desequilibrei da lata e, como a porta é enferrujada, ela abriu e eu caí na rua. Foi a gota d’água”. Quando grávida, e há algumas horas do parto, Rejane não teve dúvidas: subiu no primeiro ônibus que brotou e foi-se para o hospital. E olha que o velho Fusca tinha lá certa ligação com a criança que chegava ao mundo. Assim como os dizeres que Cara Preta carregava na traseira, a filha nasceu “careca, pelada e sem dente”. Para ambos, tudo era lucro.

Em Itapevi, município da Grande São Paulo onde Cristiano desfila com o veículo, o prazo de validade dos carros velhos demora a se esgotar. A vasta gama de automóveis em degradação desperta a curiosidade e o medo de moradores andantes e àqueles ao volante. As oficinas raramente recebem o ar de sua graxa. Relatam os mecânicos que os donos preferem aderir ao jeitinho brasileiro, apelidado de gambiarra, para não desembolsar o valor do conserto alheio.

Mas será que todo carro velho é de fato velho? Cristiano propaga sua filosofia. “Não vejo mal em ter um carro desses, afinal, onde um carro zero chega o antigo também pode chegar. É melhor ter um “podrão” que leva e trás do que não ter nenhum”, ressalta. Ao que parece, a paixão brasileira por carros vai além das aparências. O que vale é andar sobre quatro rodas, mesmo que elas sejam claudicantes.