terça-feira, 24 de maio de 2011

Se esse Fusca falasse...

Atire a primeira pedra quem nunca preservou aquele velho artefato com apego inestimável. O mesmo que abriga gerações de traças e já faz história pela ferrugem - esta fiel companheira desde o fim da juventude - vê a perenidade escorrer pelo tempo. Mas, nem tudo está perdido. Até mesmo a mais ínfima das substâncias físicas, a pleno vapor da corrosão, pode resistir ao óbito quando ingressa no caminho da reforma. É deste princípio que sobrevive o Fusca 1970 do pedreiro Cristiano Alves, conquistado no ano de 2005 a duras pás de cimento.

O carro é moeda de troca. Foi porque Cristiano ergueu um muro na casa do amigo que a peça veio parar em suas mãos. “Ele pediu que eu levantasse um muro na sua casa, em troca, prometeu, me daria o Fusca. Foi amor à primeira vista.” Depois de um tapa no visual, o carro ganhou cara nova e um nome: “Cara Preta”. Explica-se. A obra tem impressa na lataria cores opostas: o preto e o branco. Não à toa. Corinthiano convicto, o contraste é a combinação preferida do dono.

Mais branco do que preto, o Fusca carrega peculiaridades: embreagem quebrada, faróis queimados, arames seguram o assoalho e uma lata de tinta serve de banco-passageiro. Pasme: segundo Crisitano, o carro leva diariamente seus oito amigos ao trabalho.

Frente à falência do limpador de pára-brisa, um deles resolveu dar sua contribuição. É Raimundo Nonato quem salva a turma. Em dias tempestuosos, a invenção do limpador de pára-brisa manual faz sucesso entre os passageiros do automóvel. “Amarrei um barbante de cada lado e, quando a chuva aperta, é só puxar de um lado para o outro”. Reformado? Não para Rejane. Casada com Cristiano, a empregada doméstica crê que se existe um lugar certo para o carro, esse lugar é o ferro-velho.

Ela desabafa os apuros que sofreu quando ainda subia na “fubica” – é como se refere quando fala do carro. “Passamos numa curva muito fechada. Me desequilibrei da lata e, como a porta é enferrujada, ela abriu e eu caí na rua. Foi a gota d’água”. Quando grávida, e há algumas horas do parto, Rejane não teve dúvidas: subiu no primeiro ônibus que brotou e foi-se para o hospital. E olha que o velho Fusca tinha lá certa ligação com a criança que chegava ao mundo. Assim como os dizeres que Cara Preta carregava na traseira, a filha nasceu “careca, pelada e sem dente”. Para ambos, tudo era lucro.

Em Itapevi, município da Grande São Paulo onde Cristiano desfila com o veículo, o prazo de validade dos carros velhos demora a se esgotar. A vasta gama de automóveis em degradação desperta a curiosidade e o medo de moradores andantes e àqueles ao volante. As oficinas raramente recebem o ar de sua graxa. Relatam os mecânicos que os donos preferem aderir ao jeitinho brasileiro, apelidado de gambiarra, para não desembolsar o valor do conserto alheio.

Mas será que todo carro velho é de fato velho? Cristiano propaga sua filosofia. “Não vejo mal em ter um carro desses, afinal, onde um carro zero chega o antigo também pode chegar. É melhor ter um “podrão” que leva e trás do que não ter nenhum”, ressalta. Ao que parece, a paixão brasileira por carros vai além das aparências. O que vale é andar sobre quatro rodas, mesmo que elas sejam claudicantes.

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