quinta-feira, 31 de março de 2011

São Paulo, terra de peculiaridades culturais

Em minhas andanças pela periferia de São Paulo, me deparei com um caso curioso: a união matrimonial de Lucimar Pereira e Rashed Adewaele. Adianto que não se trata de um casal comum. O casamento dura já oito anos e serviria de tema às discussões mais acaloradas. Ela, brasileira de São Paulo, evangélica e boleira. Ele, africano da Nigéria, ainda meio indeciso quanto à opção religiosa e, desde os 30, revendedor de acessórios africanos para o Candomblé aqui no Brasil. Ambos dividem o mesmo teto num dos prédios da Cohab em Itaquaquecetuba (SP) e, apesar das diferenças, compartilham a vida e um filho em comum: Gabriel Pereira Adewaele. O primogênito do casal não é filho único. Dois irmãos africanos moram à distância de um oceano com a primeira esposa do pai na cidade nigeriana de Lagos.

No Brasil, a história de amor começou à primeira vista. Saculejando dentro do ônibus, Rashed observou Lucimar à frente e viu mais que um corpo em movimento: a mulher atulhada de sacolas nas mãos carregava também encanto singular. Encasquetou de levantar ao som da campainha, ajudá-la com seus pertences e seguir para o desconhecido lar onde morava a paulistana. Conheceu a família e a resposta positiva de Lucimar sobre o pedido de namorá-la. Logo no primeiro ano, veio a notícia da gravidez e, junto ao fato, o motivo que faltava para viverem sob o mesmo teto.

Rashed continuou a rotina de viagens Brasil-África, África-Brasil para que não faltasse o pão à mesa da nova família. A profissão de vendedor de artigos para o Candomblé não é das mais comuns em solo brasileiro, mas extremamente lucrativa pela pouca concorrência de importados africanos. Sua opção de trabalho não se limita à revenda desse tipo de produto. “Quando estou no Brasil, vendo roupas e acessórios para o Candomblé, quando na África, levo bijouterias da 25 de Março que fazem muito sucesso entre as mulheres de lá”. Ele explica que os que saem de seu país de origem para outras terras, geralmente adotam a prática numa espécie de alternativa bem sucedida. “Aproveitamos a viagem para reabastecer o estoque e ganhar mais dinheiro”, confidencia o africano.

Acostumada às viagens de Rashed, Lucimar diz ter se acostumado à rotina do marido. “Por aqui, eu vou me virando. Cuido da casa, pago as contas, lavo, passo, cozinho pra mim e meu filho e vendo bolos sob encomenda”. Desde 1995 se converteu ao protestantismo e entregou sua vida a Cristo e à igreja evangélica Assembleia de Deus. No primeiro dia da decisão, o pastor orientou a jovem quanto às doutrinas: não cortar o cabelo, não pintar as unhas, não usar brincos, vestir saias ao invés de calças etc. Decidida, a evangélica resolveu acatar às ordens e passou a viver segundo a nova fé. Lucimar diz que sempre soube da profissão do marido. “Só aceitei porquê não é ilegal. Não é ‘santo’ mas pelo menos é honesto”, justifica.

O casal vive bem. No apartamento 23 do boco I à rua Osvaldo Cruz do Jardim Itapoã, costumes brasileiros e africanos se misturam no cotidiano da família. O prato tipicamente solicitado por Rashed à Lucimar é o inhame, na Nigéria chamado de “yam”. A raiz é servida com muita pimenta, exatamente como no país de origem e, segundo a cozinheira, faz o africano “lambuzar os dedos”, já que não perdeu o hábito nigeriano de comer com as mãos. “Rashed também aprecia nossa feijoada brasileira, só que não pode faltar a farinha de mandioca”, conta a brasileira (massa consistente é essencial para aqueles que dispensam o talher na hora da alimentação).

Lucimar já se acostumou aos hábitos do marido. A comida, a fala e as viagens à África não parecem construir uma barreira entre o casal. Quanto à profissão: “Pra mim é profana, ele não deveria contribuir com esse tipo de atividade, mas precisamos sobreviver de alguma forma”. Rashed bem que tentou trabalhos mais pacificadores. Durante dois anos, estudou enfermagem nos Estados Unidos e veio pronto para o mercado brasileiro. Não teve sucesso. A outra alternativa era vender cabelos “made in África”. Rashed se apressa: “Não teria o mesmo lucro. Vender para o Candomblé é certeza de dinheiro bom”. Entre uma conversa e outra, o casal trocava olhares de cumplicidade.

3 comentários:

  1. Muito bom. Mas a história é real? Você entrevistou os dois?

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  2. Oi professor!
    É real sim! Tive a oportunidade de conhecer o casal quando trabalhava para aquele programa "Casos de Família" do SBT...O legal é que a diretora gostou tanto do caso que eles até participaram do programa.

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  3. Os relatos do Casos de Família são perfeitos para trabalhar a narrativa jornalística literária!! :)

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