segunda-feira, 21 de março de 2011

Heróis Urbanos

Entro no ônibus e meus olhos se dirigem diretamente a um rapaz, por conta de seu distinto jeito. Não é todo dia que vejo peculiaridades na massa homogênea trabalhadora que se desloca sonolenta rumo ao trabalho. O nome do indivíduo eu descobri depois, quando a moça que o acompanhava pronunciou sonoramente: CAIO! Camisa social listrada arregaçada na altura dos cotovelos. Eram sete horas da manhã e ele estava pendurado no ônibus já maldizendo a vida comum para aquela senhora de cabelos loiros ainda desgrenhados do sono. Era a sua mãe.  Entusiasmado, um pouco bravo, um pouco risonho, Caio relatava:

- Fui ao médico e ele me falou que eu estava com estresse. Dezenove anos com estresse! Quis quebrar a cara dele.

-HAHAHA!- ecoou a risada da loira que o ouvia, fazendo despertar a metade dormente do ônibus – E se você tivesse com ela...

- Se eu estivesse casado com ela, pior ainda! Racharia a cara dela e a do médico. Mãe, a vida é dura, a vida é difícil. Meu patrão chega para mim e não quer nem saber o que faço. Quer apenas que eu dê um jeito nos meus funcionários, que eu os amanse e os faça trabalhar.

O próprio rapaz, Caio, não tinha cara de quem tinha vontade de trabalhar. Fiquei imaginando ele, camisa semiaberta mostrando aquele tufinho de pelos peitorais e a manga ainda arregaçada a mostrar a tatuagem feia, mascando um pedaço de palha. Uma mistura de Jeca Tatu com o astuto, autoritário (hahaha) e metódico Adam Smith. Viva as nações desgovernadas!

É incrível como coincidências acontecem, mesmo antes do meio-dia. No momento em que a cena acontecia no ônibus, eu tinha em mãos um livro sobre linguagem, literatura e comunicação, e estava lendo sobre a transmutação dos heróis dos romances no decorrer do tempo. Do herói grego que acreditava no contato com os deuses do Olimpo, para o herói pagão ou cristão - ou pagão e cristão e ao mesmo tempo-, e daí já um salto para o herói brasileiro, o índio e, finalmente, o herói contemporâneo, aquele que não precisa ser nenhuma celebridade para sobreviver – uma espécie de Fabiano de Graciliano Ramos.

Estava um herói na minha frente. Um trabalhador tatuado, desleixado em sua fala e trejeitos em geral e ao mesmo tempo com responsabilidades de chefe, numa incongruência e contradição típica dos heróis gregos das epopéias, de um Odisseu que batalhava e matava em terra e mares com a sua espada, e depois beijava docemente a donzela que o aguardava lamuriosa e cheia de amor para dar. Não era mais um simples operário do sistema que meus olhos vislumbravam. Era Caio de Carapicuíba com suas vestes sociais, imponentes desenhos marcados a doloridas agulhadas nos braços, dono do comportamento tempestuoso esperado de um jovem guerreiro de dezenove anos que luta contra o casamento, o chefe e o sono que o ataca às sete horas da manhã no ônibus lotado.

Contemporâneo herói urbano, bravo!





3 comentários:

  1. Muito bom o texto, má! hahah
    Ah, que bom que conseguiram mudar a fonte, assim tá bem melhor mesmo.

    Beijos e continuem assim, o blog tá no caminho certo :)

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  2. Muito bom! Ônibus e metrô é um prato cheio para personagens...

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